Não há justiça à morte

Hoje cruzei-me com uma resmistura de Mazzy Star. Costumava ouvir a original com dois dos meus melhores amigos do fim da minha adolescência quando íamos à Covilhã sair à noite: o Rodolfo Pimenta e o Miguel Pereira. Para mim esta banda há-de ter sempre a noite na Nacional 18 e as luzes da Covilhã na encosta sul da Serra da Estrela pela frente.
O Pimenta começou a namorar com a Joana. O Pimenta e a Joana, se ainda não se chatearam, são hoje o Colectivo Fotograma e despertam  o gosto pela animação nas crianças em áreas rurais na zona centro do país. Não tenho o número deles, nem lhes mando mensagens no Facebook mas hoje vou dizer-lhes que me lembrei deles. Primeiro, enviaria o link desta música ao Miguel porque foi enquanto ele metia a cassete do álbum que tinha esta música no autorádio do seu Fiat 127, que ouvi pronunciar pela primeira vez "Mazzy Star" mas não posso. O Miguel morreu há muitos anos atrás, e por mais que queira não posso. As mulheres, até a minha mãe, diziam-me que ele era um rapaz belíssimo. Como eu tinha 18 anos e sempre fui virado para as raparigas, eu dizia que sim e não pensava mais nisso... O Miguel era o meu amigo, isso era espectacular e bastava-me. Era um amigo mais velho que trabalhava até às nove e meia no café da irmã e ainda tinha vida para sair connosco noite dentro Cova da Beira fora... Se era bonito ou feio tanto me fazia.
No ano seguinte entrei para a faculdade, o tempo passou, mas quase sempre que regressei ao Fundão, consegui estar com ele. Entretanto ele foi trabalhar na Câmara Municipal e quis contratar-me para fazer a identidade do festival Cale, o que foi altamente porque deu uns trocos, e deu para pintar uns murais e fazer uns "stencils" pelas ruas do Fundão. Mas de todas as coisas que estimo dele, se me tivesse de esquecer de alguma para me poder relembrar melhor de outras, abdicava deste trabalho (do qual tenho flyers, posters, e desdobráveis, e foi quase todo feito à distância) para reavivar as memórias de quando vivi com ele na mesma cidade. Já nem me lembro da idade dele, lembro-me de um aniversário dele, anunciado no dia, celebrado com dois abraços, um meu outro do Pimenta. Mas também já não tenho a certeza se a minha memória me trai. Não sei em que dia nasceu nem em que dia morreu. Não me lembro.
E no entanto em mim permanece o rosto dele, algumas expressões pelo menos, ainda resta ele a falar, e as músicas que ouvíamos, os sons do casaco de lona espessa dele, o som dos grilos de nenhures onde parávamos para fazer não sei bem o quê, e os cheiros dos sítios onde estávamos, sempre os cheiros. O cheiro a estofo de carro, a bomba de gasolina, o cheiro a noite na Covilhã quando saíamos do carro, um charro na viagem, o riso de homem bom dele, um fino no Lá em Cima com o Pimenta a flirtar com a Vânia, Morphine, Joy Division, Nick Cave, Chick Corea, Ravi Shankar, Portishead, Massive Attack, Young Gods, Nine Inch Nails, a cara de preocupado dele porque estava atrasado, e a sua voz calma e cheia de ternura, ele a sacar de um aperto de mão daqueles, a sorrir, a chamar as pessoas com o cuidado do sul e candura dos homens do interior, os olhos a brilhar, a alegria, fazer dum puto um amigo, acho que eram 10 anos de diferença. Paredes de Coura, sudoeste, Moledo... Ficou isto e tantas coisas mais, mas não chega. As memórias colapsam e mesmo que resistam, hei-de um dia morrer eu também, de forma que quem nunca o conheceu nunca poderá saber. Era preciso e bastava conversar com ele. Se vocês o tivessem feito algum dia, percebiam hoje as coisas que não consigo escrever. Não chega o que consigo dizer para o fazer presente.
Falta quase tudo... Falta um post dele para a gente saber onde ele anda, ou um passeio com ele para eu saber como ele anda. Uma saída à noite ou uma ida a um festival com ele para nos rirmos das merdas que o Lipe diz. Falta uma fotografia dele no facebook tirada ontem, para conseguirmos tirar a prova de que é possível manter a mesma ternura e o encanto no olhar, ano após ano. Tenho quase a certeza que ele ia conseguir, mas falta a prova. Falta ele, e o que teria sido dele se não tivesse morrido. Falta todo ele vivo. Era assim que ele se apresentava, por inteiro, nos olhos. Falta o Miguel. 
Como todos nós havemos de faltar um dia. Mas não é fácil faltar como ele... Sempre foi óbvio que ele era especial, mas é cada vez duro perceber, depois de conhecer milhares de pessoas depois dele e de me cruzar com dezenas de milhares, que já morreu uma das melhores pessoas que alguma vez conheci.

PS1: Nenhuma música faz justiça à morte de um amigo, nem nenhum texto. Isso são coisas para fazer justiça à vida.

A música:


E agora a remistura da música, que não é má mas não também não faz justiça.

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