Bem-Comum


O João Jesus está a fazer uma série de entrevistas à volta do Bem-Comum. Aqui deixo a minha :)



1- O que é para si o Bem-Comum?
A definição de Bem-Comum radica na própria ideia de Humanidade, no facto de todos nós sermos pessoas. Noutra escala, num contexto menos focado na nossa espécie, talvez até possamos olhar para o Bem-Comum como um valor transversal a todos os animais, ou até aos seres vivos. A nossa existência depende do modo como nos relacionamos com o nosso meio, que é habitado por outras formas de vida. Como é natural, se não tivermos em conta as necessidades do Outro, se agirmos de maneira irresponsável, mais tarde ou mais cedo, se o Outro não começar a lutar pela sobrevivência, vamos perdê-lo.

2- Vê o Bem-Comum como uma prioridade?
Sim, claro...

3- Existe a acusação ao Governo da tentativa de extinguir o Estado Social. O que é que acha que falhou desde '74 até aos dias de hoje, para que esteja a ser contrariada uma das bases da Revolução de Abril?
Não é uma acusação de todo errada. Não creio que os nossos governantes o façam por maldade, mas existe sem dúvida bastante arrogância e alguma falta de inteligência. Os governos portugueses, sejam eles formados pelo PS, PSD ou pelo CDS iniciaram há já muito tempo, um projecto contínuo de privatizações, porque não tinham um programa político capaz. Os programas políticos, aliás, já quase nem entram na prática da governação. É tudo sempre feito em cima do joelho. A pouco e pouco fomos cedendo direitos que deviam ter sido preservados. Isto acentuou-se com a partilha de soberania com instituições como o BCE, o FMI e a UE, mas não é um fenómeno de agora. Desde Mário Soares que os administradores públicos e legisladores foram distribuindo sectores essenciais pela mãos dos amigos e famílias mais poderosas. O que falhou foi a própria noção de socialismo e de liberalismo. Não houve uma tradução dos valores essenciais a estas duas doutrinas para a realidade do final do século XX. O que esta geração que nos antecedeu foi construindo em Portugal foi um sistema político afastado de qualquer organização coerente de valores. Liberalizar é muito diferente de privatizar. O liberalismo, na sua génese era até um movimento de esquerda, que se formou para contrariar o controlo absoluto de todos os sectores da economia que prevalecia nas monarquias. O que se fez aqui foi achar que privatizar era o mesmo que liberalizar. Privatizou-se a banca ao mesmo tempo que se liberalizou o mercado financeiro. Isso gerou oligopólios movidos pelo lucro que dominam o sector charneira da economia: o da criação de moeda. Ora, partidos que se auto-denominam de sociais ou socialistas e aplicam medidas de privatização constantes, desregulando o mercado, sem terem qualquer plano alternativo para garantir que os direitos dos cidadãos sejam cumpridos, não são, nem nunca podem ser, apelidados de socialistas nem liberais. São partidos liderados por pessoas incompetentes e negligentes na melhor das hipóteses. Neste aspecto também falharam os meios de comunicação para massas por não conseguirem ter um discurso crítico inteligente, coisa que piorou nos últimos anos. Confundiram e continuam a confundir a população, que em pleno século XXI nem sequer faz ideia de como se cria e legitima uma moeda. Também falhou a própria população, por não ter coragem para pensar pela própria cabeça e por continuar a eleger os mesmos dois ou três partidos, eleição atrás de eleição. Também percebo que quem tenha de trabalhar todos o dias 10 horas não tenha cabeça para ir para a internet pesquisar sobre história da política monetária. Com esta monotonia, quando a população se vê confrontada com programas políticos caóticos é claro que fica confusa. E devagar fomos embrenhados num discurso público que trata programas de governo de vão de escada como se fossem grandes e brilhantes orientações políticas para um país.

4- Apesar da crise, considera que estão criadas as bases para assegurar o Bem-Comum?
Não. Nada está assegurado.

5- Assumindo que o expoente máximo do Bem-Comum seria assegurar, antes de mais, todas as necessidades básicas de todos os cidadãos e considerando que, para a grande maioria das pessoas a grande motivação é monetária; num sistema em que o bem-comum fosse totalmente assegurado, qual seria a motivação dos membros dessa comunidade?
A pergunta que me coloca tem uma pequena contradição. Se o bem comum é assegurando não é preciso motivação para o assegurar, mas acredito que não seja propositada. O que deve ser desvelado é que a sua questão tem também, na sua base, um receio infundado. As pessoas não trabalham só para sobreviver, trabalham também para viver. Quero dizer com isto que a motivação pode estar em muitos lugares. Pode ser o dinheiro, a procura do lucro como referiu, ou a necessidade que lhe esteja associada, mas também pode ser a paixão, o desejo de vitória. Também se pode trabalhar por amor ou altruísmo. Ou pela busca de aceitação, por mera realização pessoal, etc.. Trabalhar pode melhorar muitos outros aspectos da vida além do financeiro. A moeda é apenas uma das medida da economia contemporânea, cujas regras de produção a colocam nas mãos de uma pequena elite. Se as regras de acesso à moeda mudarem, passa a haver espaço para que o cidadão comum possa pensar em assuntos muito mais relevantes para a felicidade individual e colectiva.

6 - Sem perder de vista a noção de Bem-Comum: como vê o sistema económico em vigor em Portugal?
O sistema económico é o mesmo que existe na grande parte dos países do mundo: delicadeza com os produtores de moeda e grandes corporações que a detêm, e desdém e paternalismo para com a maioria da população. Claro que vejo isto com maus olhos. Chegámos ao ponto de termos um governo duro e insolente com os cidadãos que diz representar e simpático com os mercados. Ainda por cima não está a ser feito qualquer trabalho de interligação entre a saúde financeira das grandes empresas e a acessibilidade aos bens essenciais por parte da população. É um sistema em os bancos têm mais direitos que a população, a começar logo pelo direito à criação de dinheiro. Isto não é característica de um mercado livre. Infelizmente qualquer governo que trabalhe dentro deste cenário vê-se forçado a agir desta forma. Só com um governo corajoso que compreenda para quem deve trabalhar, e que se interligue com outros governos visionários, se poderá operar uma mudança de paradigma monetário. Preocupam-me muito os outros sectores da economia mas se o sector monetário não sofrer uma remodelação antes, não há grandes possibilidades de alterar o destino para o qual caminhamos. Só não vê quem não quer ver. Se uma média potência económica como a Itália falir, por exemplo, corremos o risco de ocorrer uma depressão internacional em cadeia. Algo que nunca foi visto. É tenebroso demais mas 1929 vai parecer uma gripe ao lado do que se avizinha. Hoje em dia não existem mecanismos democráticos nem instituições que estejam preocupadas com os direitos humanos num cenário de recessão, imagine o que pode acontecer num cenário de depressão. O que mais me assusta hoje em dia é ainda não conseguir perceber como é que as pessoas que trabalham em sectores dos quais conseguem tirar rendimentos para o seu projecto de vida, vão reagir quando o euro e o dólar falharem. Vão entrar em pânico. Quase todos os meus amigos e alguns conhecidos, e até os meus pais, estão a pensar num êxodo urbano. Ninguém quer ficar nas cidades se isso acontecer.

7- Acha que a sociedade está disposta a aceitar um sistema que considere o Bem-Comum — o 'Nós' antes do 'Eu'?
Num modelo simples de dois agentes, para Nós evoluirmos, o Tu não deve estar antes nem depois do Eu. Um pouco como as pernas, um pé à frente do outro, é certo, e se analisarmos a marcha, o eixo que as faz mover é comum a ambas. Por isso é que o caminhar consegue ser bem sucedido, porque não se anda com uma perna em Braga e outra em Bragança. Mas esta não é a melhor das metáforas quando falamos em macroeconomia... Não vivemos num sistema em que dois constituem um só. Vivemos numa sociedade global com muitos elementos diferentes que vivem em muitas culturas distintas. A economia de uma civilização não é um sistema com um eixo apenas. É um sistema complexo. Uma política monetária tem que respeitar isso e encontrar o mínimo denominador comum permitindo flexibilidade no modo como se desenvolve a economia global, à semelhança de um organismo vivo com muitas células diferentes, com funções diferentes e em que todas precisam de alguns nutrientes essenciais. Não é o coração nem o cérebro que dizem quanto vale uma molécula de oxigénio para uma célula. As instituições monetárias e financeiras regem-se pela procura do lucro, e estão demasiado distraídas com isso para poderem zelar pelo Bem-Comum. Assim usam indicadores dissociados da realidade cultural e produtiva de cada zona. Não pode considerar que um sistema centralizado que dependa da decisão de poucos possa ser uma solução mas a maioria dos governos europeus acredita que o problema da "marcha" se resolve centralizando e ditando sobre todas ou quase todas as ferramentas de alimentação da economia. E não... É impossível calcular o número de variáveis possíveis entre agentes económicos. Eles formam sempre comportamentos complexos enquanto conjunto. Isto tudo para dizer que nenhum mecanismo de criação de moeda onde o poder de decisão é centralizado poderá ser suficientemente orgânico para resultar bem um sistema composto por muitos agentes. A própria noção de valor varia de indivíduo para indivíduo. É urgente desenhar um método em que a moeda não valorize ou desvalorize de acordo com pensamento e a ideologia de uma elite.


8- Considera que a Cultura pode ter um papel fundamental na educação para o Bem-Comum?
Claro que sim. Mas a cultura de uma civilização é tudo o que se torna parte dos seus hábitos: é a corrupção, são os telemóveis, os rituais religiosos, os blogues, são as paredes a cair, as festas dos jovens, os tags, os anúncios enganosos, os meios de transporte, o nepotismo, a banha da cobra, etc.. Os intelectuais da televisão e jornais tendem a confundir cultura com belas-artes, literatura ou cinema feito fora de Los Angeles. Isso também é cultura, mas apenas uma pequeníssima parte dela.

9- Como vê a Política Social em Portugal?
É uma política que acredita que não é possível investir em mecanismos de protecção dos direitos humanos se os bancos não estiverem bem de saúde. E, infelizmente, com este sistema monetário, assim é.

10 - A democracia é entendida como o sistema político que mais valoriza a opinião pública. Considera que, coerentemente, a democracia seja o modelo político ideal para assegurar o Bem-Comum?
A democracia é um bom sistema, mas precisa de ser sofisticada. Não se pode dizer que vivamos numa democracia hoje. As ferramentas e os instrumentos democráticos que foram implementados depois de 1974 em Portugal, por exemplo, foram importantes mas são frágeis, falíveis... Embrionários, por assim dizer. A revolução de Abril (e Novembro) criou uma democracia medrosa, conservadora, resistente à mudança, o que não é para grande espanto visto que viemos de uma ditadura que atravessou gerações. Considero que democracia tem que se adaptar a uma sociedade global, sem medos. Vivemos hoje em dia num mundo com boas ferramentas de comunicação em que existem milhões de pessoas com acesso a mais informação do que todos os reis portugueses e imperadores chineses juntos alguma vez tiveram. Se as pessoas souberem transformar essa informação em conhecimento expansível, se criarem métodos de debate e procedimentos para uma acção colectiva no sentido de melhorarem as suas próprias vidas, certamente surgirão evoluções da maior importância a todos os níveis.

11- E, de entre as utopias, encontra algum sistema que possa idealmente superar os sistemas em vigor?
As utopias não são sistemas uma vez que não encontram concretização possível. No máximo são modelos de organização ideais. Quando esses ideais passam a constituir doutrinas chegamos sempre a tentativas de implementação. Isto não é mau por si só. O que é mau é quando essas doutrinas são tão persuasivas que deixam de se conseguir questionar fazendo com que as pessoas abandonem o espírito crítico. Aí começam a ter força suficiente para mover cegamente as pessoas. As três grandes ideologias dos últimos séculos, para mim são o socialismo, liberalismo e anarquismo, sendo que o anarquismo, nunca teve essa eficácia precisamente por considerar que a espontaneidade de um sujeito racional é uma suas máximas, por isso não se espalha enquanto modelo inquestionável. Para nosso grande mal nem o socialismo nem o liberalismo conseguiram disseminar-se sem causar graves atropelos aos valores humanos. Negligenciado até em muitos casos, os seus próprios valores essenciais. Não acredito em ideologias nem em doutrinas de qualquer espécie, mas acredito em valores humanos. As utopias são essenciais porque apontam para um horizonte fantástico que, mesmo que não seja alcançado, dá um rumo. Mas é necessário perceber muito bem que nem sempre os fins justificam os meios. Por mais ambiciosos que possamos ser, por mais nobres que sejam os nossos desejos, é no meio que nos encontramos, e é de lá que retiramos a nossa força e em que vivemos a nossa vida.

12- "Não temos um bom estado democrático", quem o afirma é José Gil. Concorda?
Plenamente. Não temos um estado democrático. Muito menos bom. As decisões são todas tomadas pelos grandes grupos económicos e pelas instituições bancárias.

13 - Pensa que a política em Portugal tende a proteger o Bem-Comum, o Bem-Privado ou o Bem-Público — ou os três?
Tende a proteger o Bem-dos-administradores-públicos-e-privados-mais-poderosos... Não o Bem-Comum.

14- Por onde acha que deve passar o futuro da governação/gestão portuguesa?
O futuro da governação/gestão portuguesa deve passar pela maximização da autonomia da sociedade civil. Por um entendimento definitivo que um estado não é apenas função pública, é também o sector privado, mas que sem uma função pública saudável, a função privada não consegue desempenhar bem o seu papel. Deve também passar por um trabalho de debate público local, nacional e debate público internacional. É nestes moldes que, de um cenário difuso e confuso, estão gradualmente a ser construídos modos de gestão alternativos. É nos corpos intelectuais marginalizados pelos meios de comunicação social que estão a ser idealizadas as ferramentas democráticas mais sofisticadas. A sociedade portuguesa está debater lentamente mais em passo constante no sentido de perceber os erros desta geração de gestores e governadores. Não vemos isso nas TVs e Jornais mas temos assistido a uma das maiores campanhas de sensibilização e de formação nascida da própria população... Movimentos como os Occupy, os 99%, os Zeitgeists, os Anonymous, e movimentos mais pequenos como as Assembleias Populares e as Acampadas etc. estão a contribuir para a informação dos cidadãos que em cadeia vão partilhando dados... São milhões de pessoas a informar outros tantos milhões. Começam também a desenvolver-se esboços, planos faseados, em partindo de experiências de movimentos civis de outros países para que, se existir um colapso monetário e económico, e os actuais governantes desistam finalmente do seus planos de implementação da doutrina liberal mais radical (a Escola Neoclássica), exista um caminho possível para solidificar a união entre povos. Uma união económica e social com países que aceitem um modelo monetário viável e que boicotem os que que continuem a negligenciar os direitos humanos. O futuro deste país, deve também passar pela prisão dos actuais administradores públicos e deputados que aprovam e executam medidas anti-constitucionais, nem que seja por poucos anos. Não estamos a falar de crianças. Mas sim de adultos que deliberadamente assumem a responsabilidade de representar a população mas que, quando alcançam os lugares de decisão, esquecem os seus eleitores e trabalham cobardemente para grandes instituições monetárias. Nada disto é possível sem que exista o apoio na manutenção da segurança dos nossos exércitos. Nesse campo Portugal pode orgulhar-se dos sinais que têm sido dados desse sector da nossa sociedade. Mas acima de tudo, precisamos de compreender que nada vai correr bem se não começarmos a pensar pelas nossas próprias cabeças de um modo emotivo e simultaneamente próximo do método científico.

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