A minha vida aumentou um bocado há bocado.
Nunca me tinha acontecido isto: Uma memória com cerca de 15 anos saltou para a minha frente. Algo ao qual nunca mais tinha dedicado atenção. Este tempo todo estava aqui. E não é uma memória vaga. É complexa e tem vida. Trouxe-me a esssência dessa época. Acho até que me lembro do que geralmente sentia, via e ouvia. Um palco com dois nichos laterais, um com o quadro eléctrico, outro com cadeiras e mesas empilhadas e era nessa; que estava o extintor. Nós à espera lá em cima, antes de entrarmos. A minha mochila de formato horizontal de sarja forte velha e rasgada em tons bordeaux com acabamentos de cordão vivo cinzento nas arestas, e bordado da O'neill na língua com fecho de click. Pousada a um canto enquanto falávamos antes de chegar o professor. O som da chuva lá fora e o de dois amigos que se provocavam. Ninguém olhava muito para eles até ao estrondo provocado por um deles a ser empurrado contra a caixa vermelha da mangueira ou contra uma porta. Continuávamos a conversar. Às vezes vinha o contínuo pôr mão no pessoal com um olhar ou com uma palavra mais dura. Não tínhamos muito medo dele mas respeitávamos o senhor. Era boa pessoa. Se não dava o segundo toque e chegava o stôr, o sr. contínuo desembolsava as chaves para nos abrir a porta. Nós a descermos as escadas ocas e a reverberação dos passos ao tropeção de uma turma agitada, a sala ainda escura. Distribuíamo-nos pelas fileiras enquanto o professor chegava ao quadro. Isto é no anfiteatro da Escola Secundária do Fundão, com degraus de pinho já sem verniz, e com cadeiras de plástico castanho presas aos grandes degraus como que num estádio. O stôr descia até ao palco desaparecia na boca de cena. A luz acendia-se fraca e quase toda a iluminação me parecia centrada no palco. O cheiro a madeira e pó e uma ligeira sensação de liberdade que se sentia. A minha perna esquerda dobrada por baixo do meu rabo de puto ossudo e um braço estendido para fora a abraçar uma cadeira vazia. O Rui Baptista ao meu lado, a Ninita ao lado dele, o Pimenta e a Joana duas filas à frente, mais para a direita. Canetas que caíam e alguns cochichos. Era uma aula de história da arte, tinha 16 ou 17 anos e não fazia ideia de que havia de viver 13 anos no Porto. Assim como até há 15 minutos atrás não fazia ideia de que tinha vivido isto.