Serviço público nada

(ligeiramente revisto)
Os tempos que correm são velhos e difíceis. Só isso é que explica que ande tudo meio burro. Agora, que o António Borges (ex-vice presidente do conselho de administração do banco Goldman Sachs International) veio dizer que tem a intenção de privatizar a RTP, é que os editores e jornalistas da RTP repararam que afinal este governo nem sequer é tão centro quanto isso, e que anda a tomar decisões baseadas numa ideologia económica de direita radical. Agora esperneiam. Agora...
Vamos então pôr os pontos no is. 
A liberdade de expressão e a linha editorial não são coisas que se possam comprometer para que um serviço público seja prestado. Certo? Melhor dizendo, o serviço público destes senhores da televisão só chega até à sua linha editorial e liberdade de expressão. São órgãos de comunicação "independentes". Podem em tempos passados, tê-lo sido (antes do neoliberalismo ter permeado as suas administrações) mas agora não se pode dizer que sejam órgãos de serviço público.  
Tudo o resto, é treta imbricada em lábia interligada com treta que se desmonta em três tempos:
1) A questão da língua. Dos muitos milhares de palavras portuguesas apenas mil são utilizados regularmente pelos jornalistas e, consequentemente, pelos consumidores de canais portugueses. Telenovelas, programas com apresentadores a dançar e palcos montados nos centros das cidades a transmitirem conversas com "críticos sociais" não são serviço público.
2) A bandeira dos artistas portugueses: é um trapo rasgado. A SPA tem contratos assinados com os canais libertando-os de pagar direitos de autor. Músicos da SPA tipo João Pedro Pais e Rui Veloso e mais não sei quem também não são serviço público. Além disso, passar ou produzir um filme de tempos a tempos não é financiar e apoiar o cinema. Os artistas que realmente estão a cumprir a sua função não dependem do trabalho da RTP para crescerem e com eles, não estejamos preocupados. Nunca foi a TV que lhes resolveu a vida. 
3a) A "informação". A maior parte do jornalismo praticado é baseado em rubricas de opinião, onde os mesmos comentadores se revezam há décadas. Jornalismo de investigação, apenas de ano a ano, e costuma trazer  consequências para os jornalistas. Quem souber o que se passa na Síria, já agora, faça o favor de me dizer.
3b) A informação sobre os órgãos democráticos da república: meus caros, apesar do sofrível espetáculo, a Assembleia da República TV e o Diário da República conseguem ser mais claros do que os 4 canais juntos, com editores, comentadores, consultores, analistas e juristas. E informações extra-governamentais (sobre outras opções e programas políticos que não sejam dos 5 partidos dos quais os média gostam) nem vê-las. Nem sequer em tempo de campanha eleitoral. Ainda há bem pouco tempo a Entidade Reguladora veio dizer que os canais violaram o princípio da igualdade de acesso ao direito de antena por não promoverem debates com todos os partidos e vieram logo os 4 conselhos de administração (incluindo o da RTP) dizer que é impossível prestar esse serviço. Senhores, não estamos a falar de fazer levantar um foguetão com energias renováveis, nem em construir um ponte até África, trata-se tão somente de esquecerem as audiências por um período curto de tempo de 4 em 4 anos e de arranjarem mais umas cadeiras para colocar à mesa. E se interesses mais altos se levantam, mesmo nas alturas onde a democracia mais precisa do serviço público, são esses interesses que vos designam. 

Mas isto tudo são argumentos secundários. O que importa perceber é se um suporte de comunicação impositivo, uni-direccional, como a televisão, que precisa de audiências para que, através da publicidade se criem consumidores para outros serviços e produtos, consegue fazer algo de positivo pela democracia. Como é que um meio de comunicação, com uma narrativa linear, em que se uma pessoa não apanha o programa certo não consegue receber a informação certa, como é que uma televisão que tem de lutar todos os santos minutos para ter mais um pobre cidadão a vê-lo pode conseguir prestar-lhe um serviço público que necessita de dedicação, vontade, tempo e paciência.
A televisão que temos não informa, e quando o faz, nunca é imparcial. Não é possível. Muitas vezes isso acontece de forma ingénua mas outras não, e desde a omissão à manipulação do discurso a informação vai sendo distorcida, se é que alguma vez é prestada. 

Hoje em dia, a informação mais empenhada, verificável e transparente circula numa outra esfera. 
O debate e a informação pública, para darem frutos, têm quase sempre origem em formalismos (métodos, objectivos, burocracias, tecnocracias, júris, eleições...)
O espaço adequado a este modelo informativo e de diálogo não é a TV. Se os órgãos de administração pública se preocupassem em sofisticar as suas plataformas de comunicação na internet, melhorando o acesso aos serviços, e ampliando mesmo o alcance do debate e de decisão, considerando a inclusão da sociedade civil nesses procedimentos, se criassem espaço para a oposição partidária, ou civil*, nesses mesmo suportes, talvez aí existisse um serviço público mínimo mas decente. 
Quanto à história de portugal que a RTP tem em seu poder, já alguém ouviu falar em digitalização e de discos de memória? 
Basicamente, anda tudo ó-ti-ó-ti e ninguém sabe muito bem do que está a falar.

A TV até pode continuar a comunicar e a tentar informar, só não pode é continuar a  ser entendida enquanto lugar do debate público, ou o lugar onde a informação dos agentes políticos e culturais se serve por excelência.


* Isto, de ter os partidos da oposição em sites da administração pública, pode assemelhar-se a um qualquer suicídio político, mas é preciso ver que a democracia não é de nenhum partido e que se uma administração abre espaço para a "concorrência" enquanto está legitimada para tomar essas decisões, tal pode servir-lhe quando estiver na oposição.

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