Vou ali dar um tiro nos cornos da TV e já volto
do Bitaites de Marco Santos
Por razões que agora não interessa discutir, a televisão da minha sala costuma estar ligada no programa da Fátima Lopes. E eu não sei onde deixei os auscultadores.
No momento em que escrevo, uma mulher triste está a submeter-se a um detetor de mentiras para provar a um marido patologicamente ciumento, também presente no estúdio, que os filhos são dele e ela não tem amantes.
A apresentadora faz as perguntas, a mulher responde com «sim» ou «não», um «professor» opera a máquina, um polígrafo ou lá o que é aquela merda, a câmara foca-se na mulher tristemente injustiçada, no marido tristemente ciumento, a «banda sonora» é um filme de suspense (ou será de terror)
a plateia sustém a respiração, ansiosa por saber se a mulher está a mentir ou a dizer a verdade, a família do marido, a família da mulher, a música intensifica-se, o teste termina, é agora é agora
ainda não, o «professor» retira-se para analisar os resultados, a Fátima enche chouriços prolongando a entrevista onde se devassa ainda mais a vida íntima das famílias, com consentimento de toda a gente, a nora disse, a sogra acusou, o primo cuscou, o marido empranhou (pelos ouvidos), finalmente acaba a entrevista, agora é a vez de o marido ser entrevistado, é agora é agora
não, ainda não, primeiro anuncia-se um passatempo e um felizardo qualquer que irá ganhar um carro, depois a entrevista com o marido atinge um nível de depravação tal que eu me pergunto como consegue a entrevistadora continuar com aquilo sem vomitar o almoço, talvez ela não exista e seja apenas um holograma e não precise de almoçar, apenas parecer humana
lá vem outra vez o passatempo, o carro, algum felizardo vai voltar a casa de rabo tremido
o «professor» regressa ao estúdio, é agora é agora
ela trai o marido ou não trai, a apresentadora começa a revelar as respostas do polígrafo, mas fá-lo muito devagarinho, uma longa pausa entre a pergunta e a resposta, como num concurso, é verdade, é mentira, ele é corno, ela é fiel, é agora é agora
não, ela não está a mentir, declaram os resultados do polígrafo, a mulher triste chora, o marido ciumento baixa a cabeça, envergonhado, a plateia aplaude e o desmoronamento moral do ciumento é ainda maior, ele pede desculpa, ela diz que não aceita, aplausos aplausos
a apresentadora Fátima, reconciliadora, uma santa eletrificada, diz que compreende o ressentimento, a dor da mulher triste, mas também é preciso «louvar» a coragem do marido ciumento por ter deixado cair o ciúme naquele chão encerado do estúdio e pedido desculpa diante de uma desaprovadora plateia de senhoras, aplausos aplausos
a mulher triste diz que não quer desculpas, quer é que ele deixe o álcool, em nome dela e dos filhos, aplausos aplausos aplausos
e a Fátima regozija, é uma oportunidade, um novo começo, parabéns aos dois, parabéns ao detetor de mentiras
e agora temos um prémio fantástico de 15 mil euros para oferecer
e o carro, não se esqueçam do carro.
Este post foi publicado originalmente no Bitaites.
Por razões que agora não interessa discutir, a televisão da minha sala costuma estar ligada no programa da Fátima Lopes. E eu não sei onde deixei os auscultadores.
No momento em que escrevo, uma mulher triste está a submeter-se a um detetor de mentiras para provar a um marido patologicamente ciumento, também presente no estúdio, que os filhos são dele e ela não tem amantes.
A apresentadora faz as perguntas, a mulher responde com «sim» ou «não», um «professor» opera a máquina, um polígrafo ou lá o que é aquela merda, a câmara foca-se na mulher tristemente injustiçada, no marido tristemente ciumento, a «banda sonora» é um filme de suspense (ou será de terror)
a plateia sustém a respiração, ansiosa por saber se a mulher está a mentir ou a dizer a verdade, a família do marido, a família da mulher, a música intensifica-se, o teste termina, é agora é agora
ainda não, o «professor» retira-se para analisar os resultados, a Fátima enche chouriços prolongando a entrevista onde se devassa ainda mais a vida íntima das famílias, com consentimento de toda a gente, a nora disse, a sogra acusou, o primo cuscou, o marido empranhou (pelos ouvidos), finalmente acaba a entrevista, agora é a vez de o marido ser entrevistado, é agora é agora
não, ainda não, primeiro anuncia-se um passatempo e um felizardo qualquer que irá ganhar um carro, depois a entrevista com o marido atinge um nível de depravação tal que eu me pergunto como consegue a entrevistadora continuar com aquilo sem vomitar o almoço, talvez ela não exista e seja apenas um holograma e não precise de almoçar, apenas parecer humana
lá vem outra vez o passatempo, o carro, algum felizardo vai voltar a casa de rabo tremido
o «professor» regressa ao estúdio, é agora é agora
ela trai o marido ou não trai, a apresentadora começa a revelar as respostas do polígrafo, mas fá-lo muito devagarinho, uma longa pausa entre a pergunta e a resposta, como num concurso, é verdade, é mentira, ele é corno, ela é fiel, é agora é agora
não, ela não está a mentir, declaram os resultados do polígrafo, a mulher triste chora, o marido ciumento baixa a cabeça, envergonhado, a plateia aplaude e o desmoronamento moral do ciumento é ainda maior, ele pede desculpa, ela diz que não aceita, aplausos aplausos
a apresentadora Fátima, reconciliadora, uma santa eletrificada, diz que compreende o ressentimento, a dor da mulher triste, mas também é preciso «louvar» a coragem do marido ciumento por ter deixado cair o ciúme naquele chão encerado do estúdio e pedido desculpa diante de uma desaprovadora plateia de senhoras, aplausos aplausos
a mulher triste diz que não quer desculpas, quer é que ele deixe o álcool, em nome dela e dos filhos, aplausos aplausos aplausos
e a Fátima regozija, é uma oportunidade, um novo começo, parabéns aos dois, parabéns ao detetor de mentiras
e agora temos um prémio fantástico de 15 mil euros para oferecer
e o carro, não se esqueçam do carro.
Este post foi publicado originalmente no Bitaites.