CRIATIVIDADE VS CRIAÇÃO NO DESIGN: FRAGILIDADES DA FÓRMULA EM DOIS EXEMPLOS VINDOS DE DESIGN DE AUTOR

Soube que existe uma pessoa que está a tentar publicar a parte mais feroz deste texto para que lhe sirva de biografia num livro sobre Emoção. Ora, como este texto não foi escrito para esse efeito, as horas que gastei na sua redacção não servirão para que se faça dele, com um copy/paste numa nova moldura, uma piada de mau gosto.
Assim para evitar um prolongamento desta situação vejo-me obrigado a proteger a obra legalmente usufruindo excepcionalmente do direito universal de Copyright.
Aqui podem fazer download do código do direito de autor português. A minha autorização, é quase garantida, a todos os que desejem publicar um excerto deste texto desde que me avisem primeiro. Deveis saber que este foi o último recurso. 
© João Marco Martins Alves Marrucho 2010


O Design de Comunicação deve ser entendido com um processo que começa (regra geral) na interpretação do contexto, e que não tem tempo ou fase de término definível (uma vez que a comunicação, após as primeiras emissões, se vai materializando em recepções de mensagens que por sua vez podem dar resposta, resposta essa que pode gerar nova resposta ver esquema neste link).
Compreendendo isto, é fácil concluir que quando pensamos sobre design de Comunicação, podemos fazer uma análise do baseada na natureza técnica e estética a par de uma análise à integração de uma coisa no contexto.

Para simplificar:
1-apelidarei de Coisa um qualquer produto/mensagem
2-chamarei Fase Criativa ao tempo que o designer trabalha/negoceia com o cliente e se dedica à parte técnica e estética, a elaboração da Coisa
3-usarei a palavra Criadora quando me referir à fase em que a Coisa afecta o contexto exterior ao ambiente onde foi criada.
Esta nomenclatura e raciocínio são consequência de conhecimento adquirido na FBAUP que solidifiquei depois n'A Transformadora. De sorte que me dá para tentar desenvolver de modo mais profundo um conjunto de frases que podem ler-se no site da AT, na secção at (escritas por Anselmo Canha, mestrado pela FBAUP em Design de Imagem): "A comunicação é consequente. Não apenas criativa mas também criadora. Torna-se numa descoberta válida para os seus públicos. O potencial transforma-se em potência."

É aceitável que se diga que a reflexão sobre a primeira fase (a fase Criativa, a do processo de negociação, a de exploração técnica) seja aquela que "mais tinta gasta na imprensa portuguesa", ainda assim não tanto quanto desejável. O que muito raramente tem sido objecto de atenção é a parte criadora do Design de Comunicação. Este tem sido território hostil para quem quer reflectir. Não ouso em referir todas as razões para que assim estejamos, neste estado de receio perante um território que pode ser tão fértil. Não obstante admito que seja menos cativante pensar com a devida lucidez sobre estes assuntos que, pela sua visibilidade e impacto (no caso de mega-acções de comunicação), são falados com leviandade por toda a gente. Reconheço também que possa ser pouco desafiante falar sobre investidas locais (mais pequenas), talvez porque se pense sempre que sejam passageiras, ou mesmo por receio de retaliações.

Assim, como não estou a encontrar quem pense por mim sobre isto, tornou-se urgente escrever sobre isto.

Talvez alguns de vós saibam que desenvolvo, mais do que trabalho de natureza puramente teórica, trabalho prático. No início-do-início da minha (ainda curta) actividade profissional, consegui de alguma forma usar e testar uma série de vocábulos visuais, técnicas e processos variados. Para meu espanto, as pessoas começaram a dizer-me que eu tinha uma linguagem. Ao mesmo tempo que senti um certo orgulho fiquei preocupado. Comecei a perceber que enquanto algumas pessoas me relacionavam com cartazes/desenhos feitos à mão (onde associava sempre uma imagem dum contexto a uma frase de outro, criando outros significados), outras viam-me preso a um estilo onde cruzava a frieza do estilo internacional com tiques do "design antes do design se chamar design" (feito em computador e expresso em paginações de revistas com fonts modernistas nos títulos com fonts serifadas em texto corrido, florões, estiletes, filetes...), outra gente ao uso de muita cor e triângulos, outros pensavam que eu só recorria a dignbats e presets, algumas pessoas nem sabiam que eu era designer e pensavam que só produziam música electrónica e que só usava a Comic Sans.
E assim, pouco tempo depois, essas preocupações passaram. Se diferentes pessoas me associavam a diferentes coisas, nada tinha a recear.

Esta necessidade de me sentir capaz de agarrar coisas diferentes é a meu ver uma característica essencial para conseguir, à medida que eu for envelhecendo, garantir a capacidade de olhar para os desafios de olhos limpos. Sem sacar da fórmula no bolso que resolve a Diocese do Porto e a FIFA do mesmo modo. A partir daí torna-se mais simples avançar para a criação de novas identidades. Serei, menos autor do que um designer que tenha uma fórmula? Népias.

A linguagem vai além de um conjunto de vocábulos. Não é sequer redutível a um idioma ou uma língua. A linguagem de um autor pode ser muito mais do que dois ou três de tipos de letra usados repetidamente em trabalhos diferentes, ou uns bonecos de traços finos negros sobre papel texturado, por exemplo.
Um autor consegue dizer melhor uma coisa quanto mais facilidade tiver para escolher de um leque variado de recursos. As possibilidades tornam-se mais vastas. A solução mais pertinente e particular.
Às vezes o mercado funciona mal, valoriza o contrário. Alguns clientes, querem o que os outros clientes têm (efeito formiga que segue formiga, que às tantas se perde e começa a seguir a última formiga criando uma longa caminhada para o nada). Nessas situações, a força criadora do design é preterida em favor da cristalização de um certo trabalho criativo.

Até há bem pouco tempo, o designer de comunicação era entendido como designer gráfico (que por razões que me ultrapassam, ou talvez por hábito, apenas respondia pela parte criativa). Hoje em dia é de salutar que os designers de comunicação sejam profissionais reconhecidamente dotados de capacidades técnicas e conceptuais que lhes permitem tentar dominar a parte criadora do seu trabalho.
Um designer de comunicação, tem por norma uma grande formação em linguagens não-verbais e a sua formação, de natureza multi-disciplinar, obriga-o a manter atenção a (mais do que às evoluções técnicas relacionadas com as suas ferramentas) uma conjuntura.
Essa necessidade de entendimento de uma realidade exterior explica porque é que muitos clientes preferem um designer que lhes seja próximo: porque conhecem as preocupações do cliente face à estrutura mais ampla onde pretende agir.
A análise da parte criadora do design implica uma grande investigação e prende-se com questões processuais tão complexas como discretas. A somar à análise interna dos processos (muitas vezes encerrados em secretismo), é obrigatória uma análise externa. Tantas são as situações em que urge saber de política... outras saber de bioética... quotidianamente há que entender questões socio-culturais...

Há pessoas que podem argumentar que num trabalho é impossível avaliar estas duas vertentes (Criativa e Criadora) de forma separada. Compreendo que esse dizer vem de uma apreensão face a um território por explorar (e quem sabe, resultado do medo de acatar as responsabilidades inatas à nossa profissão).

Para que melhor se perceba como é importante diferenciar estes dois aspectos, dou dois exemplos de como estas duas fases podem estar desfasadas. São dois exemplos que me são próximos e apenas por isso me é possível avaliá-los. Escolhi-os porque em ambos os casos, trabalharam designers que têm desenvolvido a sua actividade à volta de um vocabulário próprio. Havia espectativas para que fossem muito boas (estas duas coisas que se seguem) e cheguei a pensar que os autores fossem assumir a responsabilidade de estudar as consequências e alterassem o seu processo criativo de acordo com essas previsões/premissas. Um bombeiro cujo o trabalho é apagar incêndios não pode vir com um canhão de água cada vez que alguém diz "Fogo!". Provavelmente dispararia o canhão em alguém no café a tecer comentários sobre o jornal.

O caso do lobo castanho: um exemplo de como um bom trabalho criativo (um cristal de beleza pop) pode não desaguar em pontencial criador, em potência.
Neste caso apresento o trabalho de um atelier de design de comunicação (onde trabalha José Cardoso) que vive num universo de figuras misteriosas de cores vivas (para ser muito sucinto). O Zé tem optado por usar os mesmo signos, as mesmas figuras, insistentemente, seja para música ou calçado, trabalhando sozinho ou em grupo.
Em 2007 trabalhei com ele num projecto chamado Power Pointers para o qual eu fazia a música e ele fazia a imagem. Mais recentemente trabalhou (no Salao Coboi) com a banda do meu mano, os Zelig. Para ambos os projectos usou, como usou para outros, ilustrações muito parecidas. O que por si não é mau. É bom que se usem os nossos próprios signos em diferentes situações porque só isso possibilita que a cultura local possa competir e permeabilizar o mercado da cultura de massas. Mas a meu ver não deve ser feito com despojo. Até os mesmos contornos podem ter texturas diferentes, se o trabalho assim o justificar. Neste caso, poderei dizer que a minha música electrónica explora texturas bem mais estéreis que a música cinematográfica, de formas estranhas, rica em timbres, dos Zelig. O José Cardoso, sacou da fórmula (apelativa, sem dúvida), fruto de um excelente trabalho de criativo, mas com imagens vectoriais esterilizadas, limpas, para as colar a um produto com uma intenção completamente diferente. Num produto com um discurso repleto de perseguições velozes e escoderijos complexos, criado por pessoas vindas de cenários tão variados como o Punk, Jazz, o Rock. Um produto que exige alguma formação e sensibilidade na parte do ouvinte e, acima de tudo, predisposição para conhecer coisas novas. Deste desencontro de linguagens resultarou o que pode ser entendido como consequência adversa: quando um crítico menos informado gostou da capa e o agarrou da sua pilha de CDs enviados pelas editoras para fazer a crítica.

Photobucket

As capas, as lombadas, os nomes, os prefácios, tudo isto constrói um texto que antecede o consumar de uma obra. E como tal, a meu ver, não devem ser idealizados apenas no plano criativo.
Mesmo que o crítico tivesse tempo para se dar ao trabalho de investigar sobre os músicos e o designer, para que pudesse fazer uma reflexão mais séria, podia dar-se o caso de simplesmente não gostar da música. Não seria preferível um desenho que antecipasse o conteúdo? Um ante-texto que colocasse o produto em contacto com um outro crítico com mais vontade para de debruçar sobre uma análise, mesmo que isso significasse chegar a menos pessoas? Não sei ao certo. Resta-me dizer que o designer nunca teve como intenção sobrepor o seu trabalho ao da banda, tenho a certeza porque o conheço suficientemente para saber que tal nunca lhe passaria pela cabeça. Provavelmente pensou que seria suficiente que o seu trabalho cumprisse a já muito ambiciosa função de fazer o crítico, ou o cliente do cliente, agarrar no CD (coisa rara e díficil de conseguir e missão que foi cumprida com brio). Por isso está de parabéns, o Zé. Já por não ter antecipado a música, não está de parabéns.




O caso das festas: um exemplo de como um resultado criador pode não signifcar que tenha existido um bom processo de criação.
Este é um caso em que um cliente (Passos de Aeróbica), cujo ponto forte é a capacidade de promoção (auto-promoção), que tem trabalhado para manter a ilusão de que é um vaso com terra fértil para o brotar de novos talentos. É um caso que envolve um designer, o Franciso Eduardo, que tem optado por fazer grandes posters (ver posters) com desenhos realistas a grafite (seja para uma filme ou uma festa). Trabalhei com o Francisco em 2008, durante a promoção do meu projecto DJ Megamix 2009, para o qual ele desenhou dois fantásticos posters, um com um retrato meu, outro com retratos do dono do clube (Becas), do promotor das festas de outro clube (Simão Bolívar) e do DJ com mais visibilidade do Porto (João Vieira aka DJ Kitten). Sensivelmente na mesma altura, o Franciso foi convidado a fazer um poster para o meu colectivo de DJS (Concorrência DJs) e voltou a recorrer à mesma fórmula. Pouco tempo depois, um promotor (Jorge Soares aka Uma Naper) de festas, também convidou o Xico para desenhar um poster. Focado num objectivo de produzir mais trabalho da mesma natureza, o Francisco fez-lhe um poster que se confundiu com os que fez para nós. Muitas pessoas chegaram a perguntar-me se eu ia tocar nessa festa. O desenho do poster é bom mas as consequências não o foram (para mim e para meu colectivo, que queríamos ter uma imagem distante de outras festas).

Photobucket

A política do Jorge (sei que sou muito suspeito) sempre teve um traço muito vincado de apropriação da imagem fotográfica dos outros, do trabalho visual (muitas vezes sem autorização), de apropriação do património cultural de outros: produtores, promotores, designers, DJs... Desde então que as festas que promove têm disposto trabalho alheio, numa moldura que promove os promotores. O trabalho deste promotores é fazer a moldura. Eu sou forçado a admitir que é bem feito tendo em conta o objectivo da auto-promoção. Mas sou levado a questionar a eficácia do seu trabalho quando este não envolver a mesma dose de culto pela própria personalidade.
É legítimo afirmar que entretanto usa as pessoas e o seu trabalho para revestir de valor criativo uma actividade que na sua essência apenas tem valor criador.
Será que outras soluções processuais coseguiriam melhores resultados? Não tenho certeza, mas creio que seria bem mais interessante aceitar o desafio de tentar criar algo, do que usar o trabalho do próximo.

Em ambos os casos os designers optaram manter as suas linhas e em ambos os casos o processo de design saiu fragilizado. O que me leva a concluir que quando um autor opta por afirmar repetidamente um estilo pode estar a limitar seriamente o carácter criativo e criador do design.

Mensagens populares