Quem se queima pela perfeição do papel

Aos dezasseis anos, depois das aulas,
eu trabalhei numa tipografia
que produzia blocos de impressos judiciais:
papel amarelo
amontoado em pilhas de dois metros de altura
que se desdobravam
enquanto eu colocava cartão
entre as páginas
e espalhava cola vermelha
de cima a baixo.
Sem luvas: as pontas dos dedos necessárias
à perfeição do trabalho
ajustavam exactamente o rectângulo de papel.
Amolecidas por volta das 9 da noite, as mãos
deslizavam ao longo de folhas bruscamente afiadas
e uniam fendas ocultas, mais finas
do que as gretas da pele.
Nesse momento a cola queimava,
as mãos suavam
e as palmas ardiam
até picarem o cartão do fim do turno.

Dez anos depois, na Faculdade de Direito,
eu sabia que qualquer bloco de impressos judiciais
fora colado com o lume de cortes invisíveis
e que cada livro de direito aberto
era um par de mãos a arder
virado para cima.

Martín Espada

(versão de LP; original reproduzido em The invisible ladder, organização e introdução de Liz Rosenberg, Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1996, pp. 56-57; existe uma tradução espanhola do poema, da autoria de Diego Zaitegui e Pedro J. Miguel, publicada na antologia Soldados en el jardín, El Gaviero Ediciones, Almería, 2009, p. 33).

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