Velocidade e Democracia
Por Ressabiator (link na barra lateral)
Nos últimos tempos tenho verificado que, para muita gente, democracia e velocidade são termos inversamente proporcionais. Tenho-me encontrado em cada vez mais situações onde se tem defendido as vantagens de sacrificar um bocadinho de democracia por um pouco mais de velocidade, argumentando que, em decisões importantes, não há tempo para consultar toda a gente, uma variação da velha ideia de que quando uma decisão é tomada por mais pessoas nunca é tomada em tempo útil.
Trata-se efectivamente de uma forma de reduzir a democracia a quem tem tempo ou meios para a exercer. Não se trata de uma coisa nova. O filósofo francês Jacques Rancière lembra que, para Platão, nem toda a gente podia participar do governo comum da cidade. Os artesãos não o podiam fazer porque não tinham tempo para se dedicarem a outra coisa que não ao seu trabalho – já nessa altura tempo e democracia eram quantidades opostas, o negativo um do outro.
Na política americana, há uma expressão curiosa, gerrymandering, segundo parece, inspirada num cartoon político, que designa o acto de redesenhar as fronteiras dos distritos eleitorais de maneira a aumentar os votos num determinado partido ou candidato. Actualmente, pratica-se uma espécie de gerrymandering no tempo: aumentando a velocidade das decisões reduz-se a quantidade de pessoas que podem participar nelas.
Um bom exemplo desta politica são os catálogos feitos para museus. O design de um catálogo costuma ser feito em muito pouco tempo; em muitos casos, menos de um mês. O resultado é uma coisa compartimentada e industrial: uma parte com imagens centradas num fundo branco; outra parte com um ou dois textos de introdução; outra com a ficha técnica e a lista das obras. Nada de muito entusiasmante. Não há muitas decisões que um designer possa tomar em tão pouco tempo. A sua participação no processo é muito pequena e tardia, e o trabalho perde com isso.
Quando se quer fazer outro tipo de design, mais inesperado e experimental, é preciso mais tempo. Numa das suas conferências, a designer holandesa Irmã Boom mostrou um conjunto de livros verdadeiramente espantosos, livros pequenos, livros grandes, livros com ritmos dados através do tamanho das letras ou das imagens, e dizia, casualmente, “Este demorou três anos” ou “Trabalhei neste durante cinco.” Eram livros muito interessantes, realizados em colaboração muito estreita e prolongada com os seus clientes.
Reclamar mais tempo, mais vagar é, neste momento uma reivindicação política. Trata-se de reivindicar a possibilidade de participar das decisões. De resto, não há nenhuma razão para que uma decisão a longo prazo tenha que ser tomada por menos pessoas por falta de tempo, excepto, talvez, o hábito português de deixar as decisões para a última – e que, em muitos casos, não passa de um expediente molengão para não discutir as coisas antes de as fazer. Essencialmente, há duas maneiras de contornar a democracia: uma delas envolve fazer coisas como invadir a Polónia, a outra implica ficar quietinho até que não haja oportunidade para discussões.
(Não, na verdade, este não é um post sobre design.)
Nos últimos tempos tenho verificado que, para muita gente, democracia e velocidade são termos inversamente proporcionais. Tenho-me encontrado em cada vez mais situações onde se tem defendido as vantagens de sacrificar um bocadinho de democracia por um pouco mais de velocidade, argumentando que, em decisões importantes, não há tempo para consultar toda a gente, uma variação da velha ideia de que quando uma decisão é tomada por mais pessoas nunca é tomada em tempo útil.
Trata-se efectivamente de uma forma de reduzir a democracia a quem tem tempo ou meios para a exercer. Não se trata de uma coisa nova. O filósofo francês Jacques Rancière lembra que, para Platão, nem toda a gente podia participar do governo comum da cidade. Os artesãos não o podiam fazer porque não tinham tempo para se dedicarem a outra coisa que não ao seu trabalho – já nessa altura tempo e democracia eram quantidades opostas, o negativo um do outro.
Na política americana, há uma expressão curiosa, gerrymandering, segundo parece, inspirada num cartoon político, que designa o acto de redesenhar as fronteiras dos distritos eleitorais de maneira a aumentar os votos num determinado partido ou candidato. Actualmente, pratica-se uma espécie de gerrymandering no tempo: aumentando a velocidade das decisões reduz-se a quantidade de pessoas que podem participar nelas.
Um bom exemplo desta politica são os catálogos feitos para museus. O design de um catálogo costuma ser feito em muito pouco tempo; em muitos casos, menos de um mês. O resultado é uma coisa compartimentada e industrial: uma parte com imagens centradas num fundo branco; outra parte com um ou dois textos de introdução; outra com a ficha técnica e a lista das obras. Nada de muito entusiasmante. Não há muitas decisões que um designer possa tomar em tão pouco tempo. A sua participação no processo é muito pequena e tardia, e o trabalho perde com isso.
Quando se quer fazer outro tipo de design, mais inesperado e experimental, é preciso mais tempo. Numa das suas conferências, a designer holandesa Irmã Boom mostrou um conjunto de livros verdadeiramente espantosos, livros pequenos, livros grandes, livros com ritmos dados através do tamanho das letras ou das imagens, e dizia, casualmente, “Este demorou três anos” ou “Trabalhei neste durante cinco.” Eram livros muito interessantes, realizados em colaboração muito estreita e prolongada com os seus clientes.
Reclamar mais tempo, mais vagar é, neste momento uma reivindicação política. Trata-se de reivindicar a possibilidade de participar das decisões. De resto, não há nenhuma razão para que uma decisão a longo prazo tenha que ser tomada por menos pessoas por falta de tempo, excepto, talvez, o hábito português de deixar as decisões para a última – e que, em muitos casos, não passa de um expediente molengão para não discutir as coisas antes de as fazer. Essencialmente, há duas maneiras de contornar a democracia: uma delas envolve fazer coisas como invadir a Polónia, a outra implica ficar quietinho até que não haja oportunidade para discussões.
(Não, na verdade, este não é um post sobre design.)