A abstracção do real
Abstract
João Marçal
Pintura. Portoartecontemporânea. Inaugura 19/6 às 21h30.
Crítica Ípsilon por:
Óscar Faria
O quotidiano contamina o formalismo abstracto nas novas pinturas de João Marçal
Foi numa das exposições marcantes de 2008, "Homenagem a Anthony Mundiaga Ogadje" (Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 23, 26 e 27 de Maio), que João Marçal (Santarém, 1980) revelou a pintura oblíqua "Alfa Pendular (no land)", uma sucessão de listras horizontais com diversas cores - vermelho, branco, azul e preto - e espessuras, que se prolongam nas bordas da tela.
A inclinação do trabalho potencia uma sensação de movimento, de velocidade: a obra pretende reproduzir a visão da passagem de um comboio; nela materializa-se a forma como esta situação é perceptível por quem viaja no mesmo meio de transporte, mas em sentido contrário. Entre parêntesis, o artista cita, num jogo de palavras, uma referência essencial para esta composição: Kenneth Noland e as suas "stripe paintings".
Se a tabela é em si esclarecedora quanto à importância dada por João Marçal aos materiais usados na feitura da obra - e cite-se, aqui, na íntegra: Cadmium Red Light (Liquitex), Cadmium Red Medium (Liquitex), Titanium White (A>2), Ivory Blank (Liquitex), Cobalt Blue (W&N - Finity), Ultramarine Blue (W&N - Finity), French Ultramarine Blue (Liquitex) e Alizarin Crimson Hue Permanent (Liquitex) sobre tela de algodão, montada sobre estrutura de MDF e pinho; 25,5 x 368 cm -, o texto escrito para a ocasião também ajuda a uma aproximação àquele trabalho: "O comboio em movimento é uma das melhores metáforas da relação complexa que estabelecemos com o espaço e o tempo. Ele oferecenos a possibilidade de escolher entre a imobilidade relativa e o movimento, se passamos pela paisagem ou se a deixamos passar por nós". O pintor acrescenta ainda, a propósito do "encontro" entre dois comboios, um momento vivido durante as sucessivas viagens que realiza entre o Porto e Santarém: "Em muitos destes momentos, sinto que a paisagem é substituída pelas linhas horizontais do rápido trem que avança em sentido contrário e que todo o movimento deixa de existir. Dentro e fora da carruagem as linhas de cor solidificam-se e aparecem estáticas perante o meu olhar". São algumas destas questões, como a relação entre abstracção e real, que atravessam a nova exposição do artista, "Abstract", na qual são apresentadas duas novas séries de trabalhos, prolongamentos de "Alfa Pendular (no land)" - o percurso anterior de João Marçal pode ser sintetizado como uma desconstrução irónica, mas profundamente ancorada na tradição, não só das gramáticas próprias da arte abstracta e do minimalismo, mas também da identidade de marcas sobretudo associadas à fotografia (os logótipos, os papéis, as embalagens, etc.).
Na MCO, o artista propõe assim sete pinturas, quatro intituladas "Travelling" - descendentes directas da obra de 2008 - e três subordinadas ao nome "Panorama". Em ambos os casos, o quotidiano continua a ser a fonte de inspiração, facto que introduz o pretendido "ruído" no imaculado formalismo das telas: ao olhar para aquelas linhas horizontais, acaba por reconhecer-se, no caso das "Travelling", um meio de transporte - o metro do Porto, os autocarros do STCP, o Intercidades - ou, no caso das "Panorama", uma agência bancária - do Millenium, da Caixa Geral de Depósitos. O abandono da forma oblíqua de "Alfa Pendular (no land)" nas pinturas "Travelling" torna estas mais estáticas, sendo que a distinção relativamente às "Panorama" - na montagem da sala principal da galeria, as duas séries surgem misturadas - é dada quer por uma composição mais "preenchida", quer pelo prolongamento das linhas nas bordas da tela.
Apesar desta perda - a primeira solução acrescentava outros sentidos à obra, tornando-a, de um ponto de vista visual, mais consequente -, os trabalhos agora visíveis continuam a demonstrar a pertinência do projecto de João Marçal - um outro autor que se pode aproximar dos seus trabalhos é Blinky Palermo, sobretudo os "Stoffbilder" (1966 - 1972). Os duplos sentidos - o título da exposição "Abstract" é mais um exemplo -; a síntese, nas diferentes telas, de problemas relacionados com a abstracção, a paisagem e a representação do movimento; as pretendidas associações aos universos da economia e da circulação de pessoas e mercadorias; o diálogo com a história: pontos de partida para uma mostra também sustentada pela sua pertinência actual, neste instante em que a arte é sujeita ao "sistema do nada", através do qual se pretende nivelar tudo, de modo a tornar indistinto um fenómeno epocal de uma prática assente na tradição.
João Marçal
Pintura. Portoartecontemporânea. Inaugura 19/6 às 21h30.
Crítica Ípsilon por:
Óscar Faria
O quotidiano contamina o formalismo abstracto nas novas pinturas de João Marçal
Foi numa das exposições marcantes de 2008, "Homenagem a Anthony Mundiaga Ogadje" (Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 23, 26 e 27 de Maio), que João Marçal (Santarém, 1980) revelou a pintura oblíqua "Alfa Pendular (no land)", uma sucessão de listras horizontais com diversas cores - vermelho, branco, azul e preto - e espessuras, que se prolongam nas bordas da tela.
A inclinação do trabalho potencia uma sensação de movimento, de velocidade: a obra pretende reproduzir a visão da passagem de um comboio; nela materializa-se a forma como esta situação é perceptível por quem viaja no mesmo meio de transporte, mas em sentido contrário. Entre parêntesis, o artista cita, num jogo de palavras, uma referência essencial para esta composição: Kenneth Noland e as suas "stripe paintings".
Se a tabela é em si esclarecedora quanto à importância dada por João Marçal aos materiais usados na feitura da obra - e cite-se, aqui, na íntegra: Cadmium Red Light (Liquitex), Cadmium Red Medium (Liquitex), Titanium White (A>2), Ivory Blank (Liquitex), Cobalt Blue (W&N - Finity), Ultramarine Blue (W&N - Finity), French Ultramarine Blue (Liquitex) e Alizarin Crimson Hue Permanent (Liquitex) sobre tela de algodão, montada sobre estrutura de MDF e pinho; 25,5 x 368 cm -, o texto escrito para a ocasião também ajuda a uma aproximação àquele trabalho: "O comboio em movimento é uma das melhores metáforas da relação complexa que estabelecemos com o espaço e o tempo. Ele oferecenos a possibilidade de escolher entre a imobilidade relativa e o movimento, se passamos pela paisagem ou se a deixamos passar por nós". O pintor acrescenta ainda, a propósito do "encontro" entre dois comboios, um momento vivido durante as sucessivas viagens que realiza entre o Porto e Santarém: "Em muitos destes momentos, sinto que a paisagem é substituída pelas linhas horizontais do rápido trem que avança em sentido contrário e que todo o movimento deixa de existir. Dentro e fora da carruagem as linhas de cor solidificam-se e aparecem estáticas perante o meu olhar". São algumas destas questões, como a relação entre abstracção e real, que atravessam a nova exposição do artista, "Abstract", na qual são apresentadas duas novas séries de trabalhos, prolongamentos de "Alfa Pendular (no land)" - o percurso anterior de João Marçal pode ser sintetizado como uma desconstrução irónica, mas profundamente ancorada na tradição, não só das gramáticas próprias da arte abstracta e do minimalismo, mas também da identidade de marcas sobretudo associadas à fotografia (os logótipos, os papéis, as embalagens, etc.).
Na MCO, o artista propõe assim sete pinturas, quatro intituladas "Travelling" - descendentes directas da obra de 2008 - e três subordinadas ao nome "Panorama". Em ambos os casos, o quotidiano continua a ser a fonte de inspiração, facto que introduz o pretendido "ruído" no imaculado formalismo das telas: ao olhar para aquelas linhas horizontais, acaba por reconhecer-se, no caso das "Travelling", um meio de transporte - o metro do Porto, os autocarros do STCP, o Intercidades - ou, no caso das "Panorama", uma agência bancária - do Millenium, da Caixa Geral de Depósitos. O abandono da forma oblíqua de "Alfa Pendular (no land)" nas pinturas "Travelling" torna estas mais estáticas, sendo que a distinção relativamente às "Panorama" - na montagem da sala principal da galeria, as duas séries surgem misturadas - é dada quer por uma composição mais "preenchida", quer pelo prolongamento das linhas nas bordas da tela.
Apesar desta perda - a primeira solução acrescentava outros sentidos à obra, tornando-a, de um ponto de vista visual, mais consequente -, os trabalhos agora visíveis continuam a demonstrar a pertinência do projecto de João Marçal - um outro autor que se pode aproximar dos seus trabalhos é Blinky Palermo, sobretudo os "Stoffbilder" (1966 - 1972). Os duplos sentidos - o título da exposição "Abstract" é mais um exemplo -; a síntese, nas diferentes telas, de problemas relacionados com a abstracção, a paisagem e a representação do movimento; as pretendidas associações aos universos da economia e da circulação de pessoas e mercadorias; o diálogo com a história: pontos de partida para uma mostra também sustentada pela sua pertinência actual, neste instante em que a arte é sujeita ao "sistema do nada", através do qual se pretende nivelar tudo, de modo a tornar indistinto um fenómeno epocal de uma prática assente na tradição.